terça-feira, 12 de abril de 2016

Lançamento Livro "Os Expostos da Roda de Lisboa"

                               Foto: jornal Alvorada

Na Biblioteca Municipal da Lourinhã, dia 9 de Abril, na mesa, da esquerda para a direita:
Fernando Mão de Ferro, editora Colibri; Maria de Fátima Reis, Faculdade de Letras de Lisboa; José António Pereira, Centro de Estudos Históricos da Lourinhã; João Duarte Carvalho, Presidente da Câmara Municipal da Lourinhã; José Damas Antunes, autor do livro; José António Santos, Presidente do Grupo Valouro.

Apresentação do Livro:
José Damas Antunes
Os Expostos da Roda de Lisboa. Percursos de Vida na Lourinhã e em Torres Vedras. Séc. XVII-XIX, Lisboa, Edições Colibri, 2015


Local: Auditório Municipal de Torres Vedras e Biblioteca Municipal da Lourinhã
9 de Abril de 2016
Maria de Fátima Reis


          Representa este momento o culminar de um processo que teve o seu início há vários anos, quando José Damas Antunes, interessado em conhecer a história da sua terra, Campelos, ia reunindo informação sobre os naturais e residentes na região de Torres Vedras, que o levou à construção de uma base de dados que permitisse tratar e correlacionar a investigação compulsada. Já no âmbito do mestrado teve o autor a oportunidade de enquadrar parte da pesquisa realizada e encontrar na temática dos expostos a visibilidade que hoje nos reúne aqui – Os Expostos da Roda de Lisboa. Percursos de Vida na Lourinhã e em Torres Vedras. Séc. XVII-XIX. Com gosto orientei a dissertação que está na base deste livro e que mereceu ao seu autor a obtenção do grau de mestre em História Moderna e Contemporânea, no ano de 2015.
          Com o estudo dos expostos iniciei o meu percurso académico que levou ao grau de mestre em História Moderna, no ano de 1989. Revisitar o tema, volvidos vários anos, teve para mim especial significado.
          Homem que vive intensamente o presente, envolvido na política partidária, com obra histórica recentemente publicada nesse domínio, José Damas Antunes olha para o passado para nele ver os elos de continuidade e de transformação das vivências. José Damas Antunes prova-nos como é possível ser comprometido com as causas de hoje e intervir de formas diversas na sociedade, sempre com um sentido de responsabilidade e militância que não se restringe à política quotidiana e à res publica, mas que engloba a prática histórica como exercício para melhor nos conhecermos.
Se este pode ser um dos sentidos de utilidade da História, então posso dizer que esta obra dá a conhecer uma realidade que ainda perdura na memória de alguns, pelos processos de transmissão oral – refiro-me à prática do enjeitamento de crianças. A sensibilidade da análise perpassa a narrativa aos mais diversos níveis e tem a sua máxima expressão na capa da obra com a gravação de nomes de expostos, que, desta forma, são lembrados. Registado fica também um sinal, dos muitos que acompanhavam as crianças abandonadas com o propósito de recuperação futura. Destaque na capa ainda para uma roda, a de Caria, em Belmonte, que lembra o local e forma dos abandonos; recorde-se, modalidade que levou, em 1783, à legalização e promoção de existência deste mecanismo de abandono de crianças. O acto de rememorar, essência da História, é assim realizado nesta obra, pela investigação, pela interpretação e pela imagem.
Digo, rememoração pela investigação para fazer sobressair os processos de pesquisa levados a cabo pelo autor. E que foram concretizados tanto nos arquivos centrais e locais, em demorada e cuidada recolha, e no inerente confronto dos documentos, como no terreno, reunindo traços da memória oral. Digo, rememoração pela interpretação para destacar a habilidade do autor, tanto na aplicação de métodos, de natureza diversa, - demográficos, estatísticos, linguísticos – como na construção da análise que exigiu, igualmente, o domínio de várias especialidades da História: antes de mais, da Demografia Histórica, mas também, da História das Mentalidades, da História da Vida Quotidiana, da História da Assistência, da História da Criança, da Prosopografia Histórica. E digo ainda rememoração pela imagem, pois, cada nome é uma História de Vida e uma Vida com História. José Damas Antunes encontra em cada nome a Pessoa na plenitude das suas vivências – materiais, psicológicas, afectivas –, em que é possível surpreendermos as formas de inserção de cada um nos novos seios familiares, entrevendo os caminhos e as raízes que fundam no espaço de criação, que passará a ser identitário.
Este é mesmo um dos traços de originalidade deste livro, que procura seguir os expostos que, abandonados na Roda de Lisboa, encaminhados para amas de zonas rurais, encontraram nos ares e nas famílias de Torres Vedras, de Campelos e da Lourinhã, uma hipótese de vida que muitos outros não conseguiram alcançar, por perecerem; vítimas das próprias condições do abandono ou do transporte. Mas, os que chegaram a Torres Vedras, a Campelos e à Lourinhã beneficiaram, como disse, dos bons ares das localidades, como era reconhecido pela Misericórdia de Lisboa, e favorecidos ficaram ainda do zelo das amas que os tiveram ao seu cuidado e, que, apesar de todas as contingências de criação, entenda-se de alargamento do seio familiar, remuneradas é certo, para o efeito, deram a estas crianças uma oportunidade – a da própria Vida.
Sensível a esta realidade que percorre as várias épocas históricas e que não é propriamente exclusiva de Portugal, no que respeita à prática do abandono e ao processo de assistência, José Damas Antunes soube com mestria escrever sobre um assunto que tem associado o estigma social de ter sido exposto. Esta é também, em meu entender, outra das novidades que a obra encerra: se, em termos sociais, não seria propriamente fácil para cada uma das Pessoas identificadas pelo Autor, assumir estas suas origens, que entroncam no abandono pelos seus progenitores, é um facto que o enjeitamento tem de ser entendido à luz das mentalidades do tempo; que o mesmo é dizer das estruturas então criadas para responder a esta prática e das formas de recepção e inserção comunitária. Aspecto que o autor deixa claro, reconhecendo que no caso dos expostos criados em Torres Vedras, em Campelos e na Lourinhã se está perante uma integração que esbate o estigma, mas não esquece a origem.
Filhos da Roda, que sugere uma filiação desconhecida, estes expostos tornaram-se filhos da terra que os acolheu. Muitos foram criados aqui e aqui criaram laços, dando também, pelo trabalho e pela geração iniciada, o seu contributo para a dinâmica económica e social desta região. Provando, como bem mostra o autor, que as suas raízes de abandono familiar, desestruturante, não condicionou um percurso de vida estruturada, num novo enquadramento familiar e regional. Quero assim relevar, o que o autor trata de forma exemplar: o papel que as amas tiveram na redefinição dos trajectos destas crianças abandonadas e o papel que a população local teve na integração destes deslocados, que não tinham sequer disso noção, e que, expostos, de filhos da Roda passaram a filhos desta terra, e que, graças às famílias que os criaram, aqui criaram raízes.
Cuidadoso na recolha da informação e rigoroso no tratamento dos dados, o autor empreendeu contactos para localizar descendentes de expostos na região estudada e aplicou técnicas para registar testemunhos. Atento às tendências recentes da História da beneficência, foi para ele fácil situar o caso em observação e dimensioná-lo nas políticas do tempo. Quer isto dizer que nesta obra se encontra também uma pronta síntese do panorama da assistência aos expostos em Portugal. A vantagem de conhecimento interdisciplinar foi determinante na metodologia exercitada. Certo da complexidade inerente à análise da história mais recente, cuidou o autor de cruzar as fronteiras do saber numa abordagem interdisciplinar, convocando a História, a Demografia, a Sociologia. Entusiasta da escrita, esta obra de História tem o rigor da descrição dos factos e o sentimento de quem os interpreta, na desejada objectividade que se requer à construção do conhecimento histórico. O recurso à memória viva exigiu um intenso trabalho da parte do autor, seja na recolha da informação, seja no tratamento desses dados, que exigiram engenho no ajustamento das ferramentas hermenêuticas.
Trabalhar com as impressões, as marcas pessoais deixadas pela vida, implica captar as próprias sensibilidades dos homens no tempo, uma área já definida de psicologia histórica que o autor sabiamente enfrentou. Sendo certo que toda a história confronta o historiador com a verdade do acontecido, é real que, se por um lado, se admite que a distância em relação à ocorrência dos factos pode facilitar a objectividade da análise e até propriamente define o labor historiográfico, por outro lado, se reconhece que a memória recente ou transmitida dos acontecimentos pode viabilizar um conhecimento mais seguro do que se passou. É precisamente perante estas propensões de trabalho historiográfico – o distante e o próximo – que situo o estudo desenvolvido por José Damas Antunes e vejo no livro a história de uma instituição – a Roda – que marcou a vida de muitas pessoas e determinou os seus caminhos futuros.
É chegado o momento de dizer que a múltipla capacidade de realização expressa pelo autor dá-nos, pois, a certeza de que estamos perante um livro de trabalho verdadeiramente interdisciplinar, em que o rigor e o detalhe nos dizem que este não é um livro ao alcance de realização de muitos. Porque impõe conhecimento, porque exige persistência, porque requer muita paciência, porque pede sensibilidade. Qualidades que reconheço no autor. Fica agora Torres Vedras e a Lourinhã, e também Lisboa, com uma obra que mostra uma realidade de muitos desconhecida. Em boa hora as Edições Colibri acolheram a publicação deste livro que terá, como se deseja, nos seus leitores, o prolongamento da mensagem que encerra. Mensagem valorizada com imagens e anexos documentais, em que ganham vida sinais de expostos, deveres das amas, testemunhos de percursos.

Ao Dr. Fernando Mão de Ferro, que dirige as Edições Colibri, editora consagrada no meio Académico, é de agradecer ter querido integrar esta obra na linha editorial de publicações. E aos municípios de Torres Vedras e da Lourinhã é de agradecer o apoio concedido, ficando assim as respectivas Histórias Locais mais ricas com um estudo que a muitos diz respeito. Agradecimento também ao grupo Valouro pelo patrocínio concedido, que tem no seu Presidente, o empresário José António Santos, a expressão maior de percursos de sucesso, cujas origens entroncam nos expostos estudados. Ao autor só posso desejar que prossiga as investigações no âmbito regional com o empenho e saber já plenamente demonstrados.