Na Biblioteca Municipal da Lourinhã, dia 9 de Abril, na mesa, da esquerda para a direita:
Fernando Mão de Ferro, editora Colibri; Maria de Fátima Reis, Faculdade de Letras de Lisboa; José António Pereira, Centro de Estudos Históricos da Lourinhã; João Duarte Carvalho, Presidente da Câmara Municipal da Lourinhã; José Damas Antunes, autor do livro; José António Santos, Presidente do Grupo Valouro.
Apresentação do Livro:
José Damas Antunes
Os Expostos da Roda de
Lisboa. Percursos de Vida na Lourinhã e em Torres Vedras. Séc. XVII-XIX, Lisboa, Edições Colibri, 2015
Local:
Auditório Municipal de Torres Vedras e Biblioteca Municipal da Lourinhã
9 de Abril de 2016
Maria de Fátima Reis
Representa
este momento o culminar de um processo que teve o seu início há vários anos,
quando José Damas Antunes, interessado em conhecer a história da sua terra, Campelos,
ia reunindo informação sobre os naturais e residentes na região de Torres
Vedras, que o levou à construção de uma base de dados que permitisse tratar e
correlacionar a investigação compulsada. Já no âmbito do mestrado teve o autor
a oportunidade de enquadrar parte da pesquisa realizada e encontrar na temática
dos expostos a visibilidade que hoje nos reúne aqui – Os Expostos da Roda de Lisboa. Percursos de Vida na Lourinhã e em
Torres Vedras. Séc. XVII-XIX. Com gosto orientei a dissertação que está na
base deste livro e que mereceu ao seu autor a obtenção do grau de mestre em
História Moderna e Contemporânea, no ano de 2015.
Com
o estudo dos expostos iniciei o meu percurso académico que levou ao grau de
mestre em História Moderna, no ano de 1989. Revisitar o tema, volvidos vários
anos, teve para mim especial significado.
Homem
que vive intensamente o presente, envolvido na política partidária, com obra
histórica recentemente publicada nesse domínio, José Damas Antunes olha para o
passado para nele ver os elos de continuidade e de transformação das vivências.
José Damas Antunes prova-nos como é possível ser comprometido com as causas de
hoje e intervir de formas diversas na sociedade, sempre com um sentido de
responsabilidade e militância que não se restringe à política quotidiana e à res publica, mas que engloba a prática
histórica como exercício para melhor nos conhecermos.
Se este pode ser um dos
sentidos de utilidade da História, então posso dizer que esta obra dá a
conhecer uma realidade que ainda perdura na memória de alguns, pelos processos
de transmissão oral – refiro-me à prática do enjeitamento de crianças. A
sensibilidade da análise perpassa a narrativa aos mais diversos níveis e tem a
sua máxima expressão na capa da obra com a gravação de nomes de expostos, que,
desta forma, são lembrados. Registado fica também um sinal, dos muitos que
acompanhavam as crianças abandonadas com o propósito de recuperação futura.
Destaque na capa ainda para uma roda, a de Caria, em Belmonte, que lembra o
local e forma dos abandonos; recorde-se, modalidade que levou, em 1783, à
legalização e promoção de existência deste mecanismo de abandono de crianças. O
acto de rememorar, essência da História, é assim realizado nesta obra, pela
investigação, pela interpretação e pela imagem.
Digo, rememoração pela
investigação para fazer sobressair os processos de pesquisa levados a cabo pelo
autor. E que foram concretizados tanto nos arquivos centrais e locais, em
demorada e cuidada recolha, e no inerente confronto dos documentos, como no
terreno, reunindo traços da memória oral. Digo, rememoração pela interpretação
para destacar a habilidade do autor, tanto na aplicação de métodos, de natureza
diversa, - demográficos, estatísticos, linguísticos – como na construção da
análise que exigiu, igualmente, o domínio de várias especialidades da História:
antes de mais, da Demografia Histórica, mas também, da História das Mentalidades,
da História da Vida Quotidiana, da História da Assistência, da História da
Criança, da Prosopografia Histórica. E digo ainda rememoração pela imagem,
pois, cada nome é uma História de Vida e uma Vida com História. José Damas
Antunes encontra em cada nome a Pessoa na plenitude das suas vivências –
materiais, psicológicas, afectivas –, em que é possível surpreendermos as
formas de inserção de cada um nos novos seios familiares, entrevendo os
caminhos e as raízes que fundam no espaço de criação, que passará a ser
identitário.
Este é mesmo um dos traços
de originalidade deste livro, que procura seguir os expostos que, abandonados
na Roda de Lisboa, encaminhados para amas de zonas rurais, encontraram nos ares
e nas famílias de Torres Vedras, de Campelos e da Lourinhã, uma hipótese de
vida que muitos outros não conseguiram alcançar, por perecerem; vítimas das
próprias condições do abandono ou do transporte. Mas, os que chegaram a Torres
Vedras, a Campelos e à Lourinhã beneficiaram, como disse, dos bons ares das
localidades, como era reconhecido pela Misericórdia de Lisboa, e favorecidos
ficaram ainda do zelo das amas que os tiveram ao seu cuidado e, que, apesar de
todas as contingências de criação, entenda-se de alargamento do seio familiar,
remuneradas é certo, para o efeito, deram a estas crianças uma oportunidade – a
da própria Vida.
Sensível a esta realidade
que percorre as várias épocas históricas e que não é propriamente exclusiva de
Portugal, no que respeita à prática do abandono e ao processo de assistência,
José Damas Antunes soube com mestria escrever sobre um assunto que tem
associado o estigma social de ter sido exposto. Esta é também, em meu entender,
outra das novidades que a obra encerra: se, em termos sociais, não seria
propriamente fácil para cada uma das Pessoas identificadas pelo Autor, assumir
estas suas origens, que entroncam no abandono pelos seus progenitores, é um
facto que o enjeitamento tem de ser entendido à luz das mentalidades do tempo;
que o mesmo é dizer das estruturas então criadas para responder a esta prática
e das formas de recepção e inserção comunitária. Aspecto que o autor deixa
claro, reconhecendo que no caso dos expostos criados em Torres Vedras, em
Campelos e na Lourinhã se está perante uma integração que esbate o estigma, mas
não esquece a origem.
Filhos da Roda, que sugere
uma filiação desconhecida, estes expostos tornaram-se filhos da terra que os
acolheu. Muitos foram criados aqui e aqui criaram laços, dando também, pelo
trabalho e pela geração iniciada, o seu contributo para a dinâmica económica e
social desta região. Provando, como bem mostra o autor, que as suas raízes de
abandono familiar, desestruturante, não condicionou um percurso de vida
estruturada, num novo enquadramento familiar e regional. Quero assim relevar, o
que o autor trata de forma exemplar: o papel que as amas tiveram na redefinição
dos trajectos destas crianças abandonadas e o papel que a população local teve
na integração destes deslocados, que não tinham sequer disso noção, e que,
expostos, de filhos da Roda passaram a filhos desta terra, e que, graças às famílias
que os criaram, aqui criaram raízes.
Cuidadoso na recolha da
informação e rigoroso no tratamento dos dados, o autor empreendeu contactos
para localizar descendentes de expostos na região estudada e aplicou técnicas
para registar testemunhos. Atento às tendências recentes da História da
beneficência, foi para ele fácil situar o caso em observação e dimensioná-lo
nas políticas do tempo. Quer isto dizer que nesta obra se encontra também uma
pronta síntese do panorama da assistência aos expostos em Portugal. A vantagem de conhecimento
interdisciplinar foi determinante na metodologia exercitada. Certo da
complexidade inerente à análise da história mais recente, cuidou o autor de
cruzar as fronteiras do saber numa abordagem interdisciplinar, convocando a
História, a Demografia, a Sociologia. Entusiasta
da escrita, esta obra de História tem o rigor da descrição dos factos e o
sentimento de quem os interpreta, na desejada objectividade que se requer à
construção do conhecimento histórico. O recurso à memória viva exigiu um
intenso trabalho da parte do autor, seja na recolha da informação, seja no
tratamento desses dados, que exigiram engenho no ajustamento das ferramentas
hermenêuticas.
Trabalhar com as
impressões, as marcas pessoais deixadas pela vida, implica captar as próprias
sensibilidades dos homens no tempo, uma área já definida de psicologia
histórica que o autor sabiamente enfrentou. Sendo certo que toda a história
confronta o historiador com a verdade do acontecido, é real que, se por um
lado, se admite que a distância em relação à ocorrência dos factos pode
facilitar a objectividade da análise e até propriamente define o labor
historiográfico, por outro lado, se reconhece que a memória recente ou
transmitida dos acontecimentos pode viabilizar um conhecimento mais seguro do
que se passou. É precisamente perante estas propensões de trabalho
historiográfico – o distante e o próximo – que situo o estudo desenvolvido por
José Damas Antunes e vejo no livro a história de uma instituição – a Roda – que
marcou a vida de muitas pessoas e determinou os seus caminhos futuros.
É chegado o momento de
dizer que a múltipla capacidade de realização expressa pelo autor dá-nos, pois,
a certeza de que estamos perante um livro de trabalho verdadeiramente
interdisciplinar, em que o rigor e o detalhe nos dizem que este não é um livro
ao alcance de realização de muitos. Porque impõe conhecimento, porque exige
persistência, porque requer muita paciência, porque pede sensibilidade.
Qualidades que reconheço no autor. Fica
agora Torres Vedras e a Lourinhã, e também Lisboa, com uma obra que mostra uma realidade
de muitos desconhecida. Em boa hora as Edições Colibri acolheram a publicação
deste livro que terá, como se deseja, nos seus leitores, o prolongamento da
mensagem que encerra. Mensagem valorizada com imagens e anexos documentais, em
que ganham vida sinais de expostos, deveres das amas, testemunhos de percursos.
Ao Dr. Fernando Mão de Ferro,
que dirige as Edições Colibri, editora consagrada no meio Académico, é de
agradecer ter querido integrar esta obra na linha editorial de publicações. E
aos municípios de Torres Vedras e da Lourinhã é de agradecer o apoio concedido,
ficando assim as respectivas Histórias Locais mais ricas com um estudo que a
muitos diz respeito. Agradecimento também ao grupo Valouro pelo patrocínio
concedido, que tem no seu Presidente, o empresário José António Santos, a
expressão maior de percursos de sucesso, cujas origens entroncam nos expostos
estudados. Ao autor só posso desejar que prossiga as investigações no âmbito
regional com o empenho e saber já plenamente demonstrados.